sexta-feira, março 23, 2012

Nossa democracia clama pelas camadas médias

Por Mara Kramer
MovimentoTodos peloBrasil

A cidadania, entendida como a consciência do compromisso de cada um de nós com relação a todos os aspectos que interferem na vida nacional, pode ser exercida de várias formas. Não obstante, um dos símbolos marcantes desta condição coletiva de interferir diretamente nos rumos de um país é a manifestação popular nas ruas. A manifestação popular, espontânea ou organizada por instituições da sociedade civil, é a imagem mais forte do povo unido que assume sua liderança na democracia, expressando diretamente em primeira pessoa, suas reivindicações, criticas e propostas. Assim como a eleição, a manifestação popular reforça a democracia e o papel do povo no centro do debate e das decisões políticas, simboliza a responsabilidade e a força de uma sociedade madura. É desnecessário dizer que esta prática participa do cotidiano de todas as sociedades europeias e dos milenares povos orientais.
No Brasil, entretanto, existe uma grande resistência da população em manifestar-se coletiva e publicamente. Sabemos que o governo petista cooptou as habituais instituições de protesto popular como a UNE e os sindicatos. Logicamente, esta circunstância dificulta a organização social, mas sabemos também que a pratica de manifestar-se não participa de nossa tradição política, e os motivos pelos quais mantemos esta postura anti-cidadã não estão claros. No presente artigo gostaria de refletir sobre este tema objetivando entender melhor nosso comportamento político enquanto povo, embora tenha consciência do quanto é delicado o assunto no qual me adentro. Esclareço que o conteúdo aqui apresentado é resultado de leituras e observações, mas não foi submetido aos parâmetros de um trabalho científico.
Nas sociedades onde predomina a cultura rural é comum uma divisão social dicotômica e antagônica. Por um lado os donos da terra, detentores do poder político, econômico e cultural; por outro uma maioria de trabalhadores rurais, dependentes econômica e politicamente dos primeiros. Estes necessitam tanto laborar nas terras do grande proprietário para sobreviver, assim como carecem de sua proteção e bendição. De forma bastante breve, esta é a realidade socioeconômica brasileira desde o descobrimento até bastante entrado o século XX, e em algumas regiões ainda permanece. Desde as Capitanias Hereditárias e seus donatários, passando pelo ciclo da cana de açúcar no litoral, até as fazendas de gado e café do Sul e Sudeste, observa-se a reprodução contínua deste modelo. A figura do latifundiário, paternalista e escravocrata estendeu-se por todo o país. Ao poder econômico originado no campo agrega-se o poder político. O período emblemático desta situação é a “política do café com leite” nos primeiros quarenta anos da República. No Brasil esta estrutura chegou a uma situação extrema, pois ao dono da terra se contrapõe a figura do escravo africano, seres humanos tratados exclusivamente como instrumento de trabalho. Os poucos trabalhadores livres, comerciantes, etc. dos primeiros séculos deveriam integrar-se ao sistema para sobreviver, o que significava submeter-se à elite latifundiária. Neste sentido, a dicotomia, o antagonismo e a hierarquia constituem a gênese da organização socioeconômica do Brasil.
Esta situação começa a alterar-se no final do século XIX com o crescimento das cidades, a incipiente industrialização no Sudeste, a Proclamação da República, a abolição da escravatura, e a chegada dos imigrantes europeus como trabalhadores assalariados. Todos estes aspectos estão relacionados com a idéia de modernização de raiz europeia, que preconiza a urbanização, a industrialização, a democracia, o liberalismo econômico como condições para alcançar o progresso, e como consequência o desenvolvimento de uma camada média da população. Assim, as classes médias são resultado do processo de modernização introduzido no país. Entretanto o desenvolvimento e organização deste setor não tem sido fácil devido a sua recente trajetória e a instabilidade econômica e política que acompanha a história da República. Nestas condições esta parcela da população segue insegura com relação ao seu caráter e posição sociopolítica. Como expressão desta postura vacilante observa-se a dificuldade da construção de parâmetros claros que lhe permitam obter uma identidade própria. Neste contexto nossas camadas médias se equilibram entre os dois polos, as camadas baixas e altas, tanto no sentido econômico, quanto no sentido de identidade cultural, a qual inclui a política.
É um clássico dizer que as camadas médias se espelham na elite, mas em nosso país esta máxima adquire ainda maior peso considerando a contundência histórica da dicotomia, antagonismo e hierarquia no campo social, sua fragilidade e a ausência de nitidez quanto ao seu papel político na sociedade. Estes aspectos demonstram a existência de uma dificuldade de definição conceitual das camadas médias no Brasil, o que as impede de assumir uma posição autônoma na dinâmica política. Tendo em vista este contexto, sua opção foi privilegiar um comportamento que a distancie das classes baixas e as aproxime das altas. 
Corrobora para esta conclusão de base histórica o discurso recorrente de integrantes das camadas médias brasileiras quando indagados de porque não participam de manifestações populares. As respostas costumam ter um teor semelhante a: “quem faz passeata é petista”(leia-se camadas baixas), “as pessoas bem postas não necessitam sair à rua para manifestar-se”, ou “se manifesta quem não tem o que comer”, “uma pessoa de bem não participa destas coisas”, e por aí vai. Estes comentários demonstram claramente a mentalidade elitista e hierárquica dos entrevistados, pois indicam que a manifestação popular é uma atividade para os necessitados, aqueles dos quais as camadas médias desejam afastar-se. A não identificação com as camadas baixas é uma luta constante das classes médias brasileiras, pois manter o status não é uma tarefa fácil em um país em constante turbulência econômica e política. Paralelamente, ao afastar-se de um extremo ela aproxima-se do outro extremo, as camadas altas. Logicamente, a cercania com a elite é interessante para as camadas médias, tanto por razões praticas (profissionais, sociais, etc.), quanto por razões simbólicas. Entretanto, ao avaliar a questão política a partir da imagem social e ganhos pessoais, as camadas médias abrem mão de sua capacidade qualitativa e quantitativa de intervir na movimentação política do país segundo seus interesses.  
Parte do problema reside na ausência de caráter das camadas médias no país, determinado pela peculiaridade de suas características, problemática, contexto, reivindicações, expectativas, filosofia, etc. Estas devem contribuir para o avanço do conjunto da população, mas contêm perspectivas e exigências próprias relativas ao seu modus de vida. Sua luta deveria ser neste sentido, mas não é, pois a identificação com as camadas altas retira-lhes o foco do combate em prol de suas necessidades, princípios, projetos e soluções para os seus problemas específicos. Seu espaço no cenário político fica vazio. As camadas médias passam a constituir uma força política em potencial, mas inerte, abafada por sua própria inconsciência. 
É bem verdade, que as camadas médias brasileiras encontraram nos últimos tempos um meio de expressão, a internet. Esta ferramenta tem sido amplamente utilizada por esta parcela da população para mostrar sua indignação e repúdio à política atual, sobretudo a partir das eleições de 2010, e verifica-se que tem obtido bons resultados. Logicamente, a movimentação política via internet é positiva e tem demonstrado nos quatro cantos do mundo sua eficiência, além de sua contemporaneidade. No Brasil, sob meu ponto de vista, evidencia um desejo de participação e interesse político inédito em grande escala. Entretanto, penso que fazer da internet o “espaço” exclusivo da luta política das camadas médias é um tema que merece maior atenção. É a internet suficiente como meio difusor do processo de construção de cidadania? É possível apenas através da internet alcançar a totalidade da população e inclui-la no processo de construção da cidadania? Nos demais países a intervenção da internet limita-se a difusão de idéias que visam a mobilização e o debate no mundo real, porque no Brasil este fenômeno não ocorre?
Penso que a reflexão sobre a ação “delimitada” das camadas médias no mundo político nacional, incluindo sua resistência a participar das manifestações populares, poderia estimular o debate sobre o tema e uma revisão de postura. As camadas médias crescem no país, e, portanto ganham força, qualidade que não deve ser desperdiçada, menos em um momento no qual o país passa por grave crise moral e política. Neste momento, este contingente da população é chamado a manifestar-se consistentemente na busca da revalorização dos princípios morais e éticos os quais sempre defendeu. É convocado a exigir compromisso e competência dos políticos na gestão pública e responsabilidade com os recursos públicos. A atuação ativa das camadas intermediárias no campo político é insubstituível e indispensável para o amadurecimento político de um país.


Mara Kramer é fundadora do MovimentoTodos peloBrasil .
Mara é arquiteta, gaucha e atualmente reside em Barcelona.  É colaboradora do BLOG "Telhado de Barro", que originou a criação do Canal R&R Foco no Fato. 

Exemplo de mobilização popular







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